A correlação entre o discurso feminista e o evento do Oscar de 2022
Por Alini de Fatima Avelino* e Virginia de Moraes Lourenço dos Santos**

Crédito: Getty Images (editada)
O movimento feminista mainstream, é o movimento ilustrado por mulheres brancas de classe média, ao menos economicamente privilegiadas, e que tem como maior reivindicação a igualdade gênero. Ou seja, salários iguais para funções iguais.
Apenas na metade da década de 1970 o tema da desigualdade foi o pontapé inicial para que as discussões saíssem dessa bolha de demandas a partir de uma coletânea de ensaios publicados pela editora Diana Press. Já era comum mulheres negras, de forma individual, serem ativas no movimento feminista desde sua gênese, mas nunca eram elas que atraiam a atenção da mídia, tampouco do movimento. Destoando de feministas reformistas, que são basicamente as mulheres que acreditavam em apenas uma reforma do sistema vigente buscando igualdade entre homens e mulheres, mulheres negras e aliadas, majoritariamente feministas brancas e lésbicas, já discordavam da noção de uma luta exclusiva pela igualdade entre homens e mulheres no sistema existente. Era de comum acordo entre ambos os grupos que não alcançariam igualdade dentro do patriarcado capitalista de supremacia branca.
Vale ressaltar que devido às mudanças na economia, guerra, depressão econômica e desemprego, essa noção do feminismo como de igualdade de gênero foi a mais aceita. Neste sentido, a autora Gloria Jean Watkins, mais conhecida pelo pseudônimo Bell Hooks, afirma em seu livro “O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras” que:
"Ao aceitar, e de fato conspirar a favor da subordinação de mulheres trabalhadoras e pobres, elas não somente se alinharam ao patriarcado existente e ao concomitante sexismo como se permitiram o direito de levar uma vida dupla, em que são iguais aos homens no mercado de trabalho e em casa, quando querem ser." (HOOKS,2020, p. 22-23)
A geração de mulheres negras/não brancas do final da década de 70 e início dos anos 80 foi a que desafiou o racismo feminino branco no Brasil com o Movimento de Mulheres Negras. Da mesma forma como ocorreu as estadunidenses, em nosso país entre as mulheres o tema de raça era tratado de maneira secundária e entre os negros as desigualdades de gênero eram ignoradas. Segundo as pesquisadoras Flávia Rios, Olivia Perez e Arlene Ricoldi isso se deve tanto à influência do marxismo nas academias brasileiras como à tradição nacional dos estudos de relações raciais que quase sempre articulou o tema da raça ao da classe, porém raramente tratou do tema gênero (2018, p. 39).
A poucas semanas atrás ocorreu a premiação do Oscar nos Estados Unidos. Neste evento o ator e comediante Christopher Julius Rock III, mais conhecido como Chris Rock, se apresentava no palco da cerimônia, quando fez uma piada de mal gosto sobre a atriz, dubladora e empresária Jada Pinkett Smith. Esposa do ator, rapper e produtor de cinema Will Smith. Rock declarou “ Jada, eu te amo, ‘G.I. Jane 2’, mal posso esperar para ver”. O que acontece é que no filme Demi Moore raspou seu cabelo para interpretar a personagem, entretanto, Jada sofre de alopecia, uma doença que significa a ausência ou queda, de maneira transitória ou definitiva dos fios de cabelo e pelos no corpo humano, podendo ocorrer em apenas algumas áreas, ou de forma total. Esta doença tem duas principais causas, a hereditariedade e os hormônios masculinos, eles provocam o enfraquecimento dos folículos capilares, acelerando a queda. Podendo também ter algumas causas não tão comuns como infecções provocadas por fungos ou bactérias, traumas na região, distúrbios de tireóide, má alimentação, falta de vitaminas, estresse entre outras.
Os tipos mais comuns de alopecia são a Androgenética e a Alopecia Areata. Esta última é a condição que atinge a atriz, a alopecia areata não cicatricial, esta condição é autoimune e não reversível.
Como reação para a fala de Chris Rock, Jada se mostrou claramente incomodada e chegou a revirar os olhos e quebrar contato visual com o apresentador. Enquanto Will Smith bradou “Deixe o nome da minha esposa fora da sua boca” enquanto se levantava para desferir um tapa no rosto do comediante.
A repercussão foi imediata nas redes sociais. Primeiro pensavam que era um número ensaiado entre os dois atores, mas conforme mais detalhes saiam sobre o acontecimento mais chocado o público ficava.
Entre todas as mais diversas reações, uma parcela de mulheres que se autodenominam feministas e de cor branca exporam suas opiniões sobre o caso, majoritariamente acusando Smith de ser machista e argumentando sobre o fato de que foi tirado de Jada o direito de se defender sozinha.
Como já mencionado anteriormente no texto, mulheres negras não viam suas pautas representadas no movimento feminista e até hoje é difícil fazer essas pautas serem entendidas. Às mulheres pretas nunca foi retirado o direito de se defender, porque ninguém o fez para elas, ao passo que muitas vezes mal eram vistas como mulheres.
O discurso de Sojouner Truth, ativista dos direitos das mulheres negras, abolicionista e ex-escrava, que se manifestou a contragosto das outras participantes na Convenção de Mulheres em Ohio no ano de 1851. As palavras improvisadas de Truth foram escritas por alguns dos participantes da Convenção. O discurso memorável e forte foi nomeado de Ain’t I a woman? (Eu não sou uma mulher?) onde argumentava sobre a posição em que mulheres brancas eram colocadas, quase como em um ‘pedestal’ onde tinham o privilégio de não ter que trabalhar por uma suposta inferioridade física e intelectual, enquanto esse mesmo pensamento não era estendido a mulheres negras. Ou seja, mulheres negras não eram nem vistas como mulheres. Como no trecho abaixo:
“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? ” (TRUTH, 1851)
É inegável que importantes bases foram criadas para o estado de bem-estar das mulheres. O movimento feminista que surgiu no século XIX com a primeira onda, passando a incorporar agendas internacionais foi de suma importância para que as mulheres conquistassem seus direitos e ocupassem espaços antes majoritariamente dominados por homens em uma sociedade quase em sua totalidade patriarcal.
Porém, ainda nos dias de hoje podemos ver que os mesmos protestos feitos por mulheres negras ao feminismo continuam sendo válidos. A história destes dois grupos é muito diferente, a relutância da comunidade em ouvir, aceitar e compreender as demandas das mulheres negras ainda é muito alta. A única base para tornar real a sororidade é a construção de um movimento feminista antirracista, entretanto não é fácil de ser feito, uma vez que a sociedade ainda se mantém segregada racialmente. Enquanto o ser negra vier antes de ser mulher, e esta vivência ser compreendida, não será possível um movimento unificado.
*Estudante do oitavo período noturno do curso de Relações Internacionais na Universidade Positivo (2022).
**Estudante do oitavo período noturno do curso de Relações Internacionais na Universidade Positivo (2022).
Referências:
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