O direito de decidir sobre o próprio corpo é negado às mulheres em El Salvador; sofre com possível fim nos Estados Unidos; e avança na América do Sul.
Por Maria Eduarda Bernartt Guzzo*

Crédito: MARVIN RECINOS / AFP (editada)
El Salvador é um dos países americanos que possui uma das leis mais rígidas sobre o aborto. Em maio de 2022, uma mulher foi condenada a 30 anos de prisão por um aborto espontâneo que sofreu em 2019, quando teve complicações em sua gravidez e não recebeu o atendimento médico adequado, foi então acusada pelo crime de aborto pelo Ministério Público. O processo judicial levou dois anos e Esme ficou em prisão preventiva durante o período, ela já era mãe de uma criança de 7 anos.
O julgamento de Esme mostra o conservadorismo e a injustiça a que mulheres salvadorenhas são submetidas. A presidente do Grupo Cidadão pela Descriminalização do Aborto, Morena Herrera, alega que "a sentença que condena Esme é um duro golpe no caminho para a superação da criminalização das emergências obstétricas que devem ser tratadas como problemas de saúde pública das mulheres". Entre 2000 e 2014, aproximadamente 49 mulheres foram consideradas rés por crimes associados à criminalização do aborto e 250 foram denunciadas por abortarem. A condenação de Esme foi a primeira desse tipo em sete anos no país e também a primeira no governo de Nayib Bukele, que em seu mandato retirou a proposta de reforma constitucional, elaborada por seu governo, sobre a possibilidade de legalizar o aborto terapêutico.
Mesmo com tais retrocessos expostos, o movimento feminista de El Salvador conseguiu vitórias importantes, como a liberdade de 64 mulheres que foram condenadas por emergências que resultaram na perda do feto, sendo um dos casos mais famosos o de Evelyn Hernandéz. Evelyn nem sabia que estava grávida e teve um parto fora do hospital, em 2016, o bebê veio a óbito, e com isso foi condenada a 30 anos de prisão por homicídio qualificado e absolvida em 2020, após anos de pressão internacional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma resolução exortando o Estado salvadorenho a não criminalizar as emergências obstétricas.
Também em maio de 2022, outra polêmica surge ao redor de tal assunto, o vazamento de um documento da Suprema Corte Estadunidense indicando a possibilidade de findarem o direito ao aborto, indo em contrapartida com a decisão tomada em 1973, a partir do caso Roe vs. Wade, que legalizou a interrupção da gravidez em todos os estados do país. Ainda em rascunho, o juiz Samuel Alito alega que: "Roe estava extremamente errada desde o início. Seu raciocínio foi excepcionalmente fraco e a decisão teve consequências prejudiciais. E longe de trazer um acordo nacional para a questão do aborto, Roe e Casey (outro processo sobre aborto, de 1992) inflamaram o debate e aprofundaram a divisão". A autenticidade do documento vazado foi confirmada pelo Chefe de Justiça, John G. Roberts Jr, que classificou a situação como "quebra de confiança única e flagrante" e anunciou uma investigação.
A decisão estava prevista para julho e foi aprovada, tornando o aborto ilegal em 22 estados. Depois da divulgação dos documentos, ativistas pró e antiaborto foram para Suprema Corte, na capital Washington, protestarem a partir de suas opiniões divergentes. A reação internacional expressou surpresa, o primeiro-ministro no Canadá tweetou: "toda mulher no Canadá tem direito a um aborto seguro e legal, nós nunca vamos desistir de proteger e promover os direitos das mulheres no Canadá e em todo o mundo". Na Espanha, um funcionário de alto escalão do governo alegou que o caso se trata de: "um retrocesso alarmante com consequências terríveis para as mulheres americanas". Outras autoridades como a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, a segunda vice-primeira-ministra da Espanha, Yolanda Diaz e um porta-voz do primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson também expressaram a preocupação com a decisão americana e realçaram a importância do direito de escolha das mulheres.

Crédito: BBC
Já em território latino-americano, são realizados avanços na contramão da polêmica estadunidense. Países como Guiana, o primeiro a legalizar em 1995, seguido do Uruguai, que teve a lei aprovada em 2012, Chile, México e Argentina, que legalizou em dezembro de 2021, a prática é permitida perante qualquer circunstância, enquanto na Bolívia, Peru e Equador é legalizado por motivos de saúde (bem estar físico, mental e social) e estados como Paraguai e Venezuela apenas o permitem em caso de risco de morte para a gestante. O último país a alcançar avanços foi a Colômbia, em fevereiro de 2022, que descriminalizou a prática até a vigésima quarta semana de gestação. Entretanto, mesmo com a legalização, outros desafios surgem, como é o caso da Argentina, que luta para fazer a lei ser conhecida.
No Brasil, o aborto é permitido em casos de risco para a mãe, má formação do feto e estupro. A lei não avança desde 12 de abril de 2012, quando foi legalizado em casos de fetos anencéfalos, a justificativa para tal estagnação seria o conservadorismo da população brasileira, a demora do STF para seguir nas discussões sobre o tema, influência da religião e entraves no Congresso Nacional. Recentemente, o pré-candidato à presidência da república, Lula, colocou o tema do aborto como questão de saúde pública, tópico que deve aparecer nas eleições deste ano. Entretanto, recentemente (08/06) o Ministério da Saúde disponibilizou um documento com objetivo de instruir médicos e enfermeiros em relação ao atendimento a mulheres vítimas de estupro, na mesma cartilha alegam que “não existe aborto ‘legal” e “nos casos em que há excludente de ilicitude” devem ser investigados pela polícia.

Crédito: Agência Pública
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da ONG Centro de Direitos Reprodutivos, 23 mil mulheres morrem por ano em tentativas não seguras de aborto, enquanto milhares sofrem complicações de saúde em decorrência da prática. A ONG conclui que restrições e criminalizações não resultaram na diminuição da prática, mas sim no aumento do risco de vida e agravamento da saúde mental e física de mulheres que tentam interromper a gravidez.
*Estudante do terceiro período noturno do curso de Relações Internacionais na Universidade Positivo.
Referências:
BBC. Aborto: o vazamento da Suprema Corte dos EUA que indica possível fim do direito à interrupção da gravidez. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61305145. Acesso em: 18 maio 2022.
BBC. O que está em jogo em discussão sobre aborto nos EUA. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61315243. Acesso em: 18 maio 2021.
MALDONADO, Carlos Salinas. Juiz condena mulher que sofreu aborto espontâneo a 30 anos de prisão em El Salvador. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/juiz-condena-mulher-que-sofreu-aborto-espontaneoa-30-anos-de-prisao-em-el-salvador. Acesso em: 17 maio 2022.
MARIE CLAIRE. Mulher que sofreu aborto espontâneo é condenada a prisão em El Salvador. 2022. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/05/mulher-que-sofreu-aborto-espontaneo-e-condenada-prisao-em-el-salvador.html. Acesso em: 17 maio 2022.
OTOBONI, Jéssica. Quais países da América do Sul legalizaram o aborto? 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/quais-paises-da-america-do-sul-legalizaram-o-aborto-argentina-vota-questao-hoje/. Acesso em: 29 maio 2022.
PASSOS, Juliana. O avanço do direito ao aborto na América Latina. 2022. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/o-avanco-do-direito-ao-aborto-na-america-latina. Acesso em: 18 maio 2022.
PODER 360. Entenda a discussão sobre o aborto nos EUA. 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/internacional/entenda-a-discussao-sobre-o-aborto-nos-eua/. Acesso em: 17 maio 2022.
UNIVERSA. Aborto: lei brasileira não avança há dez anos. O que impede a legalização? 2022. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/04/12/brasil-faz-10-anos-sem-avancos-na-lei-do-aborto-legalizacao-esta-proxima.htm. Acesso em: 29 maio 2022.