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Podemos falar em uma “nova Guerra Fria”?

Talvez, novas reflexões sejam necessárias em novos tempos.


Por Gabriel Teixeira F. de Souza*


Crédito: Teh Eng. Reprodução: Foreign Policy (editada)


É normal e aceitável, principalmente no uso da ciência, preferirmos conceitos já consolidados para entendermos novos fenômenos. Na maior parte das vezes, funciona e é mais prático do que criarmos termos do zero, sempre que um mesmo acontecimento se repete, ainda que com singelas diferenças. Esse é um dos motivos pelos quais temos teorias – conceitualizações estruturadas – que nos permitem compreender melhor a fenomenologia das Relações Internacionais (embora não seja essa a sua única função).


É por essa razão que, com o avanço da pandemia, e com um aumento na mobilização de forças militares por todo o globo, voltamos a conceitos antigos como o da Guerra Fria. Comparamos a China Comunista com a União Soviética, e os Estados Unidos, bem, com os Estados Unidos.


Todavia, buscamos refletir sobre essa visão e trazer conceitos que não podem ser esquecidos quando tratamos de uma “nova Guerra Fria”. Em primeiro lugar, são necessários alguns esclarecimentos. Não se trata aqui tão-somente sobre se haverá – objetivamente – uma “nova Guerra Fria” (no sentido material de um embate entre China-EUA), mas sim, que o conceito de guerra, tal como fora proposto e é de imaginário comum, não é satisfatório para explicar os atuais acontecimentos.


O que existe no imaginário de guerra é construído principalmente pela cultura (filmes, livros, contos, imagens, entre outros) que embasam não só racionalmente, como emocionalmente, esse tipo de evento. A guerra se contrapõe à paz – o cessar de conflitos, embora, talvez, nos tempos em que vivemos, nunca estejamos realmente “em paz”.


Por Guerra Fria, podemos compreender o período que se estendeu desde o final da Segunda Guerra Mundial (embora haja discussão sobre seu início efetivo) até o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 1991. Foi um período de tensões políticas entre as duas maiores potências nucleares do globo, animado pelo debate ideológico entre capitalismo e comunismo. No entanto, vivemos, hoje, o advento da globalização e, com ela, a ideia de “guerra global”, conforme coloca Donatella Di Cesare, filósofa italiana. Ela propõe que, na realidade, a guerra foi o que deu sentido ao mundo no século XX, sendo a Guerra Fria aquela que “marcou a linha do pôr do sol, o último horizonte da modernidade”.


As reflexões do filósofo Byung-Chul Han também corroboram essa visão. Segundo ele, o inimigo (seja ele o nazista, o aliado, o comunista ou o capitalista) se encerra junto ao século XX. Ele é derrotado, em contexto tal como o de um sistema imune que vence uma doença fatal. Com o fim da ideia de um inimigo, ficamos sem o arrepio da morte e, portanto, passamos a viver “em paz”. Todavia, “o dano não vem apenas da negatividade, mas também da positividade – não apenas do outro ou do estrangeiro, mas também do mesmo”, como aponta Han. Essas reflexões são essenciais para compreendermos com mais profundidade as tensões entre EUA e China, inclusive as tensões militares. Não se tratam de aniquilação do outro, como se trataram 50 anos atrás, nem do medo de ser aniquilado. Elas tratam da assimilação do mesmo. Não há mais inimigo a combater, não há mais dialética a seguir, mas sim uma mesmidade. E não há necessidade de sistema imunológico, se não há risco.


Tentamos criar um inimigo que teste nosso sistema imunológico, embora sem sucesso. Isso porque a modernidade fora toda baseada precisamente nessa tensão. Com o seu fim, e a criação da mesmidade, da “não-paz”, dos gradientes da globalização, perdemos nosso inimigo.


Tais reflexões filosóficas nos apresentam justamente que talvez incorremos em erro ao afirmarmos que vivemos uma “nova Guerra Fria”. Os tempos não são mais esses, e novas terminologias são necessárias. Talvez, nem o termo guerra consiga traduzir mais o que vivemos. Precisamos de novos termos para comunicarmos nossa desordem.

Nas Relações Internacionais, esse debate parece preambular, o que preocupa. As análises mais recentes buscam vencer essa barreira, mas principalmente no Brasil, não obtemos tanto sucesso. Tentamos, por várias vezes, adaptarmos nossos conceitos, encaixarmos bolas em quadrados, triângulos em círculos, a Guerra Fria no século XXI.


Vivemos, todavia, outros tempos. O que demonstra mais esse “novo século” que a pandemia? Um vírus foi capaz de alterar as estruturas sociais, econômicas, políticas e humanas, vistas como eternas. São essas as reflexões que precisamos ter nas Relações Internacionais e no cenário de pandemia. Passamos por um processo de ressignificação global e precisamos, também, ressignificar nossos conceitos de guerra e de mundo.


* Aluno do terceiro ano noturno do curso de Relações Internacionais na Universidade Positivo (2020).


Referências

ASSOCIATED PRESS. US now arms submarines with ‘low-yield’ W76-2 nukes, less powerful than Hiroshima bomb. South China Morning Post. Disponível em: https://www.scmp.com/news/world/united-states-canada/article/3048934/us-now-arms-submarines-low-yield-w76-2-nukes-less


CNN. What’s happening between the US and China is no cold war. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/05/08/world/meanwhile-in-america-may-8-intl/index.html


DI CESARE, Donatella. Terror e Modernidade. Ayine, 2019.


HAN, Byung-Chul. The Burnout Society. STANFORD: Stanford University Press, 2015.

SOUTH CHINA MORNING POST. Coronavirus: China and US in ‘new Cold War’ as relations hit lowest point in ‘more than 40 years’, spurred on by pandemic. Disponível em: https://www.scmp.com/economy/china-economy/article/3082968/coronavirus-china-us-new-cold-war-relations-hit-lowest-point

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